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‘No meu tempo era melhor’: a ciência confirma o quanto a música ficou mais triste nas últimas décadas

Um mergulho no estudo da Nature que prova o aumento da negatividade no pop e como o grunge foi o marco zero do nosso niilismo coletivo

Há uma certa arrogância geracional — da qual, confesso, sou ocasionalmente culpado — em afirmar categoricamente que “no meu tempo a música era melhor”. Essa frase, batidíssima, diga-se, costuma ser recebida com o revirar de olhos complacente dos mais jovens, que enxergam nela apenas a nostalgia ranzinza de quem não entende o presente. Mas a […]

Há uma certa arrogância geracional — da qual, confesso, sou ocasionalmente culpado — em afirmar categoricamente que “no meu tempo a música era melhor”. Essa frase, batidíssima, diga-se, costuma ser recebida com o revirar de olhos complacente dos mais jovens, que enxergam nela apenas a nostalgia ranzinza de quem não entende o presente. Mas a ciência, com frieza metodológica, resolveu entrar na discussão e, para surpresa geral, dar razão aos mais velhos. Um estudo monumental publicado na Scientific Reports, do grupo Nature, analisou mais de 20 mil canções que frequentaram a Billboard Hot 100 entre 1973 e 2023 e chegou a um veredito tão claro quanto perturbador: a música popular tornou-se progressivamente mais simples, mais raivosa e, acima de tudo, profundamente mais triste.


Não estamos lidando aqui com “achismo” ou saudosismo. Estamos falando de Processamento de Linguagem Natural (PLN) e algoritmos aplicados para dissecar a estrutura lírica de meio século de cultura pop.


O que os pesquisadores Markus Foramitti, Urs Markus Nater, Claus Lamm e Maurício Martins descobriram é que o vocabulário associado ao estresse, à dor e ao desespero escalou vertiginosamente nas últimas cinco décadas. Em contrapartida, os dados mostram que a complexidade das letras e a expressão de sentimentos positivos despencaram.


“Nossa análise revela um aumento significativo na linguagem relacionada ao estresse, juntamente com declínios no sentimento positivo e na complexidade lírica ao longo de cinco décadas (…) O aumento do uso de linguagem negativa acompanha o aumento bem documentado do estresse, da ansiedade e das ‘doenças do desespero’ na população.”


Para quem nasceu nos anos 1970 e teve o gosto moldado na década de 1980, como é o meu caso, esse gráfico estatístico é sentido na pele, não como um dado, mas como memória afetiva. Lembro-me de que a trilha sonora daquela época, mesmo quando melancólica, carregava uma vitalidade intrínseca. Havia uma paixão inspiracional, uma pulsação quase ingênua em faixas como “Walking on Sunshine” ou mesmo nos lamentos sintetizados do New Order. A tristeza tinha ritmo; a melancolia era dançante. Havia uma crença implícita de que o futuro, por mais incerto, ainda existia.


Mas então, a chave virou. E se eu tivesse que apontar o momento exato em que a música pesada se uniu ao niilismo absoluto, eu diria que foi a explosão do grunge.


Foi ali, no início dos anos 1990, que a desesperança deixou de ser um sentimento passageiro para se tornar uma estética, um estilo de vida e, tragicamente, um atestado de óbito. A música deixou de ser um refúgio para se tornar um espelho quebrado de uma geração que não via saída.


Não é coincidência que o estudo aponte um aumento na linguagem de isolamento e raiva a partir dessa época. Nós vimos isso acontecer em tempo real. Testemunhamos ícones como Kurt Cobain e Chris Cornell – frontmen que tive a oportunidade de analisar de perto em suas trajetórias – transformarem suas letras em cartas de despedida bem antes do fim físico. O mesmo vale para Layne Staley e Scott Weiland. A autodestruição não era uma performance; era a matéria-prima da arte. O grunge nos ensinou que gritar a dor era válido, mas também nos mostrou que, às vezes, o grito é a única coisa que resta antes do silêncio.


O estudo da Nature valida essa percepção ao listar termos como “chorar”, “dor”, “matar” e “ódio” como as novas moedas correntes das letras contemporâneas.


“As letras mais frequentes relacionadas ao estresse do estudo incluem ‘chorar’, ‘machucar’, ‘droga’, ‘sentir falta’, ‘solitário’, ‘brigar’, ‘matar’ e ‘odiar’ (…) Músicas com letras mais simples tendem a obter maior sucesso comercial do que aquelas com letras mais complexas.”


Quando vemos faixas como “Cry Me A River” de Justin Timberlake ou a devastadora “Hurt” (seja na voz de Reznor ou na releitura sepulcral de Johnny Cash) figurando entre as mais negativas, entendemos que a música popular se tornou um veículo para essas “doenças do desespero”. A complexidade lírica de um Bob Dylan ou a arquitetura emocional do Queen foram substituídas por repetições monossilábicas de angústia ou hedonismo vazio. A arte, como sugeriam Hegel e Sartre (citados pertinentemente na introdução do artigo), reflete o espírito do tempo. E o nosso tempo, ao que parece, está exausto.


Curiosamente, o estudo traz um plot twist sociológico fascinante: durante crises agudas e reais, como o 11 de Setembro ou a pandemia de COVID-19, essa tendência à negatividade sofreu uma interrupção. Nesses momentos de pânico real, o público não buscou o espelho da tristeza, mas a janela do escapismo. As pessoas correram para a complexidade e a positividade, usando a música como uma ferramenta de regulação emocional, uma espécie de morfina auditiva.


“Surpreendentemente, choques sociais como a COVID-19 coincidiram com atenuações, em vez de amplificações, dessas tendências, indicando uma preferência por música incongruente com as emoções, o que pode servir como uma forma de regulação emocional, como o escapismo.”


É a prova de que, quando o mundo lá fora está realmente pegando fogo, ninguém quer ouvir uma canção sobre incendiar a própria casa. Queremos Stevie Wonder. Queremos “YMCA”. Queremos lembrar de como era sentir alegria sem culpa.


Essa dicotomia nos leva à velha questão do ovo e da galinha: a música ficou mais depressiva porque a sociedade adoeceu, ou a onipresença de uma cultura pop niilista acelerou nosso declínio emocional? Como estudo Ciência da Religião, vejo nisso um sintoma de um vazio maior, uma perda de transcendência onde a arte deixou de apontar para o divino (ou para o humano sublime) e passou a escavar apenas as nossas neuroses mais térreas. Trocamos o mistério pela exposição crua da ferida.


Portanto, quando digo que “no meu tempo era melhor”, não é apenas porque eu era mais jovem, tinha um aparelho auditivo melhor e era menos viciado no cinismo. É porque a trilha sonora da minha juventude, mesmo em seus momentos mais sombrios, ainda acreditava que valia a pena estar vivo. A música atual, segundo a ciência e meus ouvidos cansados, parece muitas vezes apenas documentar, com uma precisão assustadora e simplista, as razões pelas quais tantos deixaram de acreditar.

O veredito na prática (ou A mixtape da polarização)
Para materializar essa tese, o estudo não ficou apenas na abstração dos algoritmos. Os pesquisadores ranquearam as faixas que melhor representam os extremos desse espectro emocional. De um lado, a trilha sonora do nosso colapso coletivo; do outro, a vitamina D auditiva que teimamos em buscar quando tudo parece perdido.


Confira os exemplos citados pela pesquisa que definem essas duas eras de sentimento:


O Lado Sombra (negativas e estressantes):
Kendrick Lamar – We Cry Together
Nine Inch Nails – The Perfect Drug
Elvis Presley – Hurt
Justin Timberlake – Cry Me A River
21 Savage – Red Opps

O Lado Solar (positivas e complexas):
Stevie Wonder – Do I Do
Village People – YMCA
Bruno Mars – That’s What I Like
Michael Jackson – Man In The Mirror
Rihanna – Please Don’t Stop The Music

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